De Passagem

Eu estava super ansiosa pra fazer aquela piadinha ridícula, de que estou sem tomar banho desde o ano passado. Houve, neste ano que passou, semanas que eu não consegui sair da cama, nem escovar os dentes, não comi e nem tomei banho, literalmente. Tá, não vamos começar frisando as coisas ruins.
Decidi começar o ano (ou fechar o ano) fazendo algo de significativo. Uns cinco minutos antes eu liguei o computador e me sentei pra escrever. Vi que iria demorar pra iniciar, deu que eu desci pra acordar meu pai e dar feliz aniversário pra ele. Meu pai. Se há um homem que sou incrivelmente apaixonada é ele. Longe dos clichês de que ele é um herói... Mesmo porquê estamos longe de sermos perfeitos. Falando dele, é um cara que tem uma puta história de vida. Passou fome, tirou cadeia, cresceu sem pai, ouvindo que ele e suas irmãs virariam putas e ladrões... Pegando coisa do lixo e descendo ladeira pra buscar água de balde, cresceu e andou no meio dos favelados, se amigou com a elite, se amigou com os criminosos, conquistou muito espaço. Nomes! ou codinomes; bahianinho, doda, jorge. O pardo, magro, de olhos verdes e cabelo black, discotecou bailes (inclusive no de quinze anos da minha mãe), vendeu bijuterias, limões, carregava sacolas pras madames nas feiras, vendeu espetinhos, até fazer carreira em industrias, uns lances de abrasivos, supervisão e tal. Na boa vida de ainda solteiro, minha avó Constância lhe dava um conselho, "pára de gastar seu dinheiro com rapariga, vê se compra um terreno, faz tua casa que você não é herdeiro e não vai durar essa sua vida aí pra sempre". O cara com vinte e um, constituiu família, construiu sua casa e não sei aonde, partiu para a que hoje, é seu paraíso na profissão: motorista de ônibus.
Eu nasci aqui em Arujá. Nunca gostei daqui, ao contrário do meu pai. Atualmente estamos vendendo a casa por conta de um processo judicial de separação dele e da minha mãe. Ele fala na cara de quem quiser ouvir, que tá rezando pra não aparecer nenhum comprador. É um desejo meio dividido entre ficar aqui, reformar, botar piscina e churrasqueira no quintal nivelado, ou partir pra vida de caiçara em Santos e viver da aposentadoria numa casa alugada. Eu lembro do Seu Paulo, pai da Aline, falando que ele não deve ligar muito pro meu bem estar, já que quer viver de aluguel e não vai deixar casa preu morar.
Eu penso que metade de mim morreria caso ele partisse. Além do óbvio, pelo amor que sinto, mas pelo conforto em inúmeras áreas que ele me proporciona. Dada a criação de um homem nordestino sem pai, assistido pelo avô militar, meu pai já passou uns bons bocados comigo. Não que eu seja ruim mas, nunca andei pelo certo... Enfim. Ele tenta me compreender muito. Ele me respeita. Ele discorda sim, de várias coisas, mas é isso. Não há nada além de orientação que ele me dá. Antes eu me sentia extremamente solitária. Quando a questão familiar pega no seu tendão de aquiles, fica muito complicado seguir em frente. Sabe, sem apoio dos pais, sem carinho, sem assistência. Eu sou aberta e assumidamente carente de afeto. Não há como cobrar algo de alguém que também não teve estrutura nenhuma. Venho de famílias estruturalmente fodidas e mal pagas. Sou, na medida do possível, a quebra do ciclo. Michael, meu filho, me perdoe caso eu não consiga suprir meu lugar de mãe na sua vida, eu estou tentando e morrerei o fazendo.
Falando nele, está com o pai neste ano novo. Guarda compartilhada de boca, sabe como é.
Eu pensei em sair ontem, hoje... Acabei que não fui pra lugar nenhum. Minha tia Márcia passou uma tarde conosco e, ouvir histórias da juventude deles é algo incrível. Peguei o fim de uma época que ainda dava pra chamar de reunião de família. Tenho a impressão de que a cada ano que passa, a minha família vai se deteriorando. Ou se regenerando. Depende do ponto de vista. O que será melhor: ostentar a figura de família perfeita, reunida, enchendo o cu de cachaça e falando alto, ou passar as festas cada um no seu canto?
São tantas e tantas comparações que pairam na minha mente, sabe? É melhor ser eu mesma ou ser parecida com todo mundo? Mas as pessoas não tem sua individualidade independente de seguirem a massa ou não? Qual é o preço de exercer esse seu espaço e parar de se podar pra entrar nos nichos de pequenos grupos nostálgicos e repetitivos? Vinte e seis anos e eu continuo me perguntando isso. Volto a afirmar que, é muito pior, muito mais difícil encarar tudo isso sóbria com remédio tomado. É tipo ser a flor que nasce no lixão. Estar cercada de toxinas e mesmo assim ser capaz de adornar algo na vida.
Algo que eu queria pontuar, e que comentei com o Vitor, o Edu e a Oyama, é o fato que eu odeio mudanças, e de como o tempo atropela as pessoas e as circunstâncias. Cá estou eu me balançando na cadeira ao som de Barões da Pisadinha mas há algumas horas eu estava chorando na cama porque escrevi algumas palavras, felicitações e saudades pra Yasmin. Cara, deu saudade do tempo que eu sentava na mesa da Belíssima da Armênia, pedia três, quatro litrão de Skol e tomava fumando com ela, dando risada pra caralho do trampo, dos homens, da vida.
Eu chorei porque se dependesse de mim, eu pegava tudo esses momentos, recortava e colava um do ladin do outro e vivia e revivia essa fita num looping. Eu sinto saudade de pessoas que cabiam numa época que não existe mais. Eles podem ser ou não os mesmos, mas eu com certeza não sou a mesma da semana passada. Lógico, há uns relâmpagos de "se eu não tivesse falado que amava ele, a gente tava ficando até hoje". Há umas indiretinhas inocentes com terceiras intenções. A parada é que meu coração é muito mais retardado que meu cérebro. Eu demoro muito pra desamar. Pra desgostar. Pra esquecer beijo, abraço, conversa, risada e presença. Cara, eu não esqueço, eu não supero, eu não sigo em frente.
Eu sei que o momento é extremamente propício preu ficar sozinha. Definitivamente eu não vou ter mais tempo pra farrear ou putanhar por aí porque a meta é casa-filho-faculdade e se pá trampo. É um grande desafio mas creio que tá na hora de crescer. Não tô dizendo que ceis são obrigados a fazer filho ou faculdade, não. São coisas que eu almejo.
Depois da lapada na cara que tomei da diretoria da Unifesp pela insuficiência de documentos pra provar que sou pobre, depois de dois foras que tomei do meu melhor amigo, depois das várias tentativas de retornar aos aplicativos de relacionamento, depois de tentar academia e tratamento endócrino pra emagrecer, depois de perder meu posto de madrinha de casamento da minha melhor amiga, depois de terminar um namoro que nem havia começado, depois de ter ouvido do meu irmão que eu preciso tomar jeito e rumo porque eu não tenho um trabalho que preste e que eu sou uma cabeçuda porque não terminei nenhuma das graduações que me dispus a fazer, depois de ouvir que meu filho parece autista, depois de chegar na 47ª tatuagem, depois de um ano e dez meses sem beber álcool, depois de muito energético, café, chocolates e algumas cores diferentes de cabelo, porra... Depois de tudo isso eu quero focar em fazer algo por mim, e a caralha da graduação em psicologia é tudo o que eu preciso pra saciar  minha curiosidade sobre a porra da minha cabeça fodida.
Muitas vezes eu senti que se eu morresse eu não iria fazer diferença na vida de ninguém. Muitas. Sem brincadeira. Com o passar do tempo, meu filho provou que eu estava errada. Meu pai me mostrou que eu estava errada. Minha tia Márcia até, me mostrou que eu estava errada. O Gian. A Oyama. Ela já perdeu uma pessoa de grande estima. A questão não é morrer ou supor quem vai sentir sua falta. Mesmo porque quando morrer, acabou, já era, foda-se o que você supôs ou o que você acha. A vida segue. E nessa que a vida segue, a gente tem que aproveitar que tá aqui nessa bosta e fazer alguma coisa por nós mesmos. Porra, várias vezes eu falo com o terapeuta, eu não quero viver somente pro meu filho, quero viver por mim.
Sabe, tô olhando uma folhinha aqui que eu escrevi algumas coisas pra 2023. "O que desejo?"
A princípio, mudar-me pra Santos, Entrar na Universidade pra cursar psicologia, Vender a casa, Trabalhar pela manhã e providenciar os documentos da casa. Rapaz, e não é que escrevendo e esmiuçando essa porra eu consegui devagarinho ir atrás da escritura do imóvel? Tá lá em tramitação interna na prefeitura mas tá na cara do gol. Dei uma pesquisada: o aluguel em Santos é caro preu bancar sozinha. Além do mais, Michael vai começar agora numa escola nova... E o curso de psicologia na Unifesp de Santos não está numa boa colocação dentre os melhores. Decidi por cursar na primeira que aparecer, na primeira que der pra entrar com a minha nota no vestibular.
Saca, tudo isso que eu tô falando, de lidar com obrigações, trabalhar, ter (ou não) grana, ter (ou não) amigos, lidar com sentimentos, sonhos, desejos, por deus. É difícil demais viver e manejar tudo isso. Falei pro Vitor que eu cresci vendo muita novela da Globo com a minha mãe e que fui adepta de uma lavagem cerebral. Como que os personagens tem casa carro amigo mulher grana, tipo eles não sofre quase nada, e são bonitos ainda por cima! Eu achei que dava pra ser assim. Se vocês soubessem o ódio que eu tenho de histórias do tipo eles são amigos de infância, cresceram juntos e se apaixonaram e viveram felizes pra sempre, CARALHO!
Bem, o intuito disso aqui era simplesmente fazer algo significativo. Escrever é libertador, preciso dar um descanso pro meu terapeuta e tem coisas que não dá pra falar dentro de quarenta e cinco minutos. Como eu disse pro Michael enquanto caminhávamos uma longa avenida de acesso a praia do boqueirão: a vida é tipo um dia cinzento que tu desce pra  praia. Ainda que você esteja cansado, você vai continuar caminhando. Ainda que o tempo pareça só fechar e o sol não venha, você continua caminhando. Porque você tem o objetivo de chegar na praia. Então você continua caminhando em busca do seu objetivo por mais dificuldade que tenha.
Que eu possa caminhar mesmo cansada, mesmo quando não haja sol, em busca do que quero. E que você também continue caminhando. Tipo, se você pensa em morrer, eu não acho justo, sabe? Somos gente de bom coração. Não é justo passar por essa vida sem experimentar coisas novas, uma música numa língua diferente, um salto de paraquedas, um banho de cachoeira, uma viagem de ônibus, uma comida esquisita, uma paixão ardente, um amor recíproco, uma vitória suada. Merecemos viver e cabe a cada um de nós se libertar de amarras do passado e de terceiros, pra ir de encontro com o que somos e com o que desejamos.