Confusão

 A linha tênue da confusão, do sim e do não, uma corda bamba que é navalha, num abismo profundo e profundo que parece não ter fim. Um nó na garganta e um oco no peito. Lágrimas nos olhos e inúmeros pontos de interrogação pairando na minha cabeça. O mais legal é que finalmente eu não vou culpar ninguém... Maduro da minha parte, não?
Eu cresci um pouco. E que merda é a responsabilidade de cuidar de si. Sim, pois uma vez que você cuida de si, você também cuida do outro. É idiotice você, um bêbado ou usuário de drogas achar que não vai afetar ninguém usando suas coisinhas. É aquela citação do Ricky Gervais de quando você é idiota, e de quando você morre. Você não sabe de nada mas afeta sim os outros ao seu redor.
Um minuto pra meia noite e a melhor sensação pra mim é esta: o escuro, o barulho das teclas enquanto escrevo, o cheiro de amaciante no lençol que troquei hoje mais cedo. O peso moribundo do meu corpo cheio de ódio despenca estupendamente nos colchões no chão. O escuro. O silêncio. Aquela sensação de sentar-me a mesa com meu prato de cuscuz com feijão e bisteca frita com farofa yoki, zapeando o celular vendo coisas sem graça e comer no silêncio. Em casa. Na mesa. Quieta.
O meu quarto se tornou o meu refúgio máximo. Eu fujo de tudo e me sinto protegida. Ainda que caiam bombas, canivetes... Meu quarto me guarda, me dá o colo que ninguém pode me dar. Não por não querer, sou eu quem não sei receber afeto, e eu sei disso.
Meu terapeuta bateu mais fundo na tecla do autismo. Uma coisa é tu apoiar as causas lgbtiqiap+. A outra é teu filho se assumir pra você. Uma coisa é você apoiar as causas que defendem direitos dos portadores de TEA. A outra é você receber a porra de um diagnóstico de traços de autismo e daí partir pra autismo "vulgo leve" de suporte tipo um.
Meu pai acha que psiquiatra é coisa de louco, e que eu não preciso de remédios.
Eu não falo mais com a minha mãe e foi escolha minha cortar o vínculo.
Meu irmão faz chacota com o meu tratamento. Coisa de gente com frescura, né, depressão. Falta de carpir um lote.
Eu sempre fui chamada de doidinha.
Sabe quando fica insuportável você não conseguir nem conversar olhando nos olhos do teu melhor amigo? Quando dá nervoso pensar em ter que falar com pessoas? Sabe o que é passar por oito ou nove empresas dentro de oito anos? Sabe o que é ser uma merda de uma cabeçuda que não terminou nenhuma graduação? Sabe o que é se sentir um merda, um fracasso total e ainda ter a porra da remota sensação que nem teu corpo corresponde á porra da sua mente???
A Oyama me disse, por que não tentar uma transição de gênero, né?
Acho que a única pessoa pra quem contei em detalhes sobre isso, além do meu terapeuta foi, até agora, o Vitor.
Houve um tempo em que eu participava de grupos de mastectomia, cirurgia pra arrancar os peito. Eu tenho um binder bem cafona que eu fiz, seguindo aulinhas de lá. É uma faixa pra te deixar reto. Nessa época eu queria adotar outro nome pra mim. Nada de Diana, Venus... Não. William.
Porquê o apelido de William é Bill. E eu sempre fui Bia. E seria um dia, Bill.
Agora tu imagina a filha da puta, ser um indivíduo trans, sem gênero, bipolar e/ou autista?
Será que eu sempre soube que eu seria tão diferente do padrão, cara?
Não é possível. Eu disse hoje assim como já disse vários dias no passado, em várias preces lá do tempo que eu ainda acreditava em deus. porra deus, me faz ser igual a todo mundo. eu quero ser mulherzinha fofinha. Eu quero ter cabelo, unha, quero andar de salto. Quero falar fininho, ser educadinha, sentar de perna fechada. E que porra de cabeça eu fui criar? Alcoólatra, vadia, vagabunda, boêmia, tatuada, herege, maníaca.
Eu me tornei o pesadelo do meu avô, esqueci o nome dele, coitado.
Avelino, eu acho.
Meu pai me disse que eu não seria assim caso ele fosse vivo até algum tempo atualmente.
Meu pai pediu desculpas e colocou a culpa na minha mãe, de tudo isso né que tá acontecendo comigo.
Aí se não bastasse né, o pokemon evoluiu: Ateísta, não fuma, não bebe, não fode, vagabunda pero no mucho porque assumidamente eu falo que odeio trabalhar... e mais tatuagens, bem visíveis assim, medicada, relutando há anos pelos mesmos remédios, relutando com psiquiatra porque tem medo do que vai ouvir de volta depois de falar tanta merda. Até em matar minha mãe eu já pensei. Eu já pensei em forjar minha morte e fugir. Já pensei em me matar de verdade mesmo. E é horrível você achar que não vai fazer diferença. Meu pai ficaria muito mal. Ele achou que eu tava brincando, quando eu disse que penso e que já pensei muitas vezes em tirar minha própria vida.
As palavras ecoam na minha cabeça: bipolarismo mal tratado tende a tornar-se demência. Tudo isso é autismo não tratado. Puta que pariu eu não suporto mais ter que ficar pontuando o que eu tenho. Tava tudo bem quando eu era só uma beberrona adolescente dando a torto e à direita, revoltada, que chorava vez ou outra.
Atualmente eu me sinto perdida. Eu não sei nem que nome mais eu uso pra me apresentar pras pessoas. Sabe até que eu tô perdendo o ódio de "Beatriz". Continua cafona o nome composto. Mas nenhum deles me reflete. Nem Diana, nem Beatriz, nem Bianca, nada. Eu juro por tudo que é mais sagrado, eu só quero passar despercebida. Ninguém precisa saber quem eu sou. Eu quero ser esquecida, apagada da pequena e inútil existência de uma vez por todas. Eu não sou uma mulher, eu não sou um homem, eu não sou de lugar nenhum. Eu não quero nada além de observar. Eu gosto de fotografar justamente por isso. Hoje, não importa quem tirou a foto, importa lá a imagem que ela passa, a sensação que ela causa, foda-se qual é o meu nome.
Eu sinto que já morri em algum ano aí e continuo vagando, igual galinha sem cabeça correndo por aí. Tem um teste online de autismo me esperando na outra aba. Eu nunca senti tanta confusão dentro de mim igual eu senti hoje. Eu não sei nem dizer se é raiva, tristeza, medo... Não sei. Eu não sei de tanta coisa e gostaria de não saber muito mais, nesse paradoxo maldito de saber e não saber, onde quem não sabe é abençoado e quem sabe de fato não sabe merda nenhuma.
Tava tudo bem quando eu era só mais uma na cama de alguém, nos corredores vomitados, no silêncio absoluto da minha cabeça porque o som da balada era alto demais pra me deixar pensar em alguma coisa. Hoje eu sinto o peso dos trinta nas minhas costas e não é absolutamente nada do que eu queria ou do que queriam ou do que eu ouvi falar.
Qualquer caminho basta pra quem não sabe onde quer ir. Isso já foi dito de tantas maneiras em tantos lugares, e continua me ofendendo, lógico, mais perdida que filho da puta no dia dos pais.
O retrato do medo tá tudo aí escarrado nessas palavras. Eu me ofendo porque me odeio tanto porque não me encaixo em nada. Porque porque porque. Meu deus. Essa mania desgraçada de dar explicação das coisas, é irresistível. Eu preciso saber. É viciante, me entender. E quanto mais eu tento mais eu me perco e eu não sei nem do que eu gosto mais.
Eu não sei se continuo me isolando, se continuo com os remédios, se continuo trabalhando num lugar de merda que eu não gosto, se eu entro pra faculdade, se eu sou uma boa mãe, se meu filho tá sofrendo me vendo deitada na cama querendo dormir o dia todo. Eu não sei. Eu não sei o que eu quero da minha vida, não sei o que me faria feliz além da superficialidade maldita do dinheiro. Eu não sei. Eu tô farta de não saber o essencial. Quanto mais eu me trato, mais doente eu fico. Resolver as coisas simples só te põe de cara com coisas mais difíceis.
O retrato do medo te mostra um eu violento, autoflagelado e perdido. Inofensivo porém voraz. Autodestrutivo. Completamente insignificante. Eu poderia estar pulando de alegria mas não estou, porque finalmente eu me tornei a pessoa a qual eu gostaria de estar lá pra apoiar porque não há uma puta de uma mão pra se apegar. Na hora que o bicho pega e a crise te consome, sem remédio, sem bebida, sem amigos, sem telefonemas e sem palavras pra expressar o que você sente no meio de uma tormenta interna.
Não é por mal que as pessoas não acreditem que, aqueles que dizem "eu vou estar sempre aqui" realmente estarão. Eles não vão estar mesmo. E além disso, não há como ajudar. Não é uma escova de dentes que você enfia na goela e vomita tudo. Não.
Escrever é vital como respirar pra mim. O lance não é falar pra que alguém se importe, até porque ninguém além de mim mesma pode me ajudar. A coisa toda funciona pra sanar uma dor que eu carrego noite e dia, que não cessa, que eu não sei sanar. Um caminho sem volta, uma floresta escura, hostil, fria e ameaçadora onde não há como sair ileso. O inferno da sensibilidade, do perceber, e ainda assim não saber. O que me resta é literalmente além de me lapidar, usar minhas próprias cinzas e cacos pra transformar loucura e dor em crônica. Dor crônica... Irônico isso.
Loucura crônica existe? porque é isso que tá acontecendo comigo: o tempo passa e eu me sinto cada vez pior.
A morte deve ser assim mesmo, né? Vai apagando a luz devagar, um silêncio. O escuro. Quieta. Dormir é uma amostra grátis do mercado pra provar a morte no palitinho. No silêncio, sem pensamentos, quietinho, no escuro. Vai ver é por isso que é a melhor hora do dia pra mim. É experimentar morrer, silenciar e acalmar. Minha cabeça não pára um só minuto.