Dentro da Cova (Indiferença)

 Será que você tem a mesma sensação que eu? De se sentir alguém ao mesmo tempo de ser invisível?

Observando aquelas vidas indo e vindo em grandes detalhes, enquanto você senta e só mergulha infinitamente durante algumas horas, num novo mundo.

Você só esquece dessa merda toda rolando aqui fora e observa. Você sente. Você sente alegria, angústia, terror, euforia. E então pensa eu quero ser como eles. Ou até mesmo eu sou como eles, eu sou um deles. E observa. Você é e não é. Pois nessas horas você se extingue. A sua mediocridade é ofuscada por algumas horas e foco e câmeras. E de repente somos, alguém. Ávido. Cheios de inspiração. Felizes. Emotivos tocados com alguma história que não seja a merda medíocre da nossa vida.

Eu li em algum lugar que se a gente tá infeliz ou incompleto, é porque tá existindo sem fazer algo que nos deixa verdadeiramente vivos. O foda é quando chega num ponto de não saber mais o que nos deixa vivos. Na verdade, eu sei o que me mata: a realidade.

Lê-se realidade: o que devo fazer pra me adequar pra que meus pais, meus patrões e terceiros me aceitem. E a questão é para quê devem me aceitar?

Simples. Eu preciso trabalhar. Preciso me encaixar. Eu preciso ser alguém. Sabe, ser alguém é reduzido no quanto você tem no banco, em quantos diplomas tem na parede e, em quantos contatos você tem.

Eu ando numa contramão sem freio, andando de ré. Eu não quero nada disso. Já falei que odeio trabalhar? Meu deus eu sinto vontade de gritar isso na cara de todo mundo. Eu odeio os impostos sobre uma casa que meu pai comprou o terreno, levantou tijolos e mobiliou. Porra, é dele. Mas temos um aluguel fixo de noventa e oito reais durante oito meses em um ano. Eu odeio.

Estive pensando em fazer mais um teste vocacional. Um teste de personalidade. Eu estou perdida. Até hoje não sei o que quero fazer. Só penso em ter grana pra manter meu filho com o básico. Água, luz, internet, comida, roupas, sapatos, livros, cadernos, brinquedos e uns doces de vez em quando. Eu juro por... sei lá. Eu nunca me senti tão doente e vazia como me sinto agora. Meu filho é tudo. Meu filho é tudo o que me faz não fazer besteira. Eu não desisto. Mas é por ele.

Um motivo de orgulho e um pouco de nervosismo, por não saber o que esperar a respeito, foi meu encaminhamento ao psiquiatra. Meu terapeuta acha que estou com depressão, e notou que tenho oscilações bruscas de humor. Acho curioso observar à mim mesma. Foi um exercício que ele me deu.

Preciso observar e, se possível escrever como me sinto quando algo me deixa mal.

Eu não tenho problema em escrever sobre isso. Queria muito, na verdade, encorajar pessoas como eu à buscar ajuda profissional. Entendi que amor não é suficiente, amigos não são o suficiente, pais não são o suficiente (mesmo quando os se têm presentes, coisa que nunca tive positivamente), e é uma caminhada só sua.

Nas checagens e trocas de muleta e ferramenta (eu gosto de usar essa metáfora), abandonei algo que estava me machucando há algum tempo. A indiferença.

Quando você é alguém que tolera pessoas, elas abusam e se desculpam, passivas de falhas com comoventes perdões e fragilidade. Até o dia que você manda tudo que incomoda pra casa do caralho. Aí você se excedeu. Você exagerou. Você identificou os seus limites e impôs esse limite. Chega, finalmente, a porra do dia que você olha e pensa eu mereço muito mais. Eu quero muito mais do que isso.

Quando você identifica seus limites e aperfeiçoa o autoconhecimento, algumas pessoas te acham desagradável. Mal humorada. As pessoas que ultrapassam a porra do limite, te culpam por você ser tão impetuosa. Isso acontece com frequência. Assim como a porra da desculpa ridícula de que você não sabe mais como levar as coisas. Se você não cuida, morre. Seca. Se extingue. Se exaure. Isso vale pra tudo. Eu tô cansada das pessoas ditando como deveria ser. Vai ser como eu quero. Vocês fazem isso o tempo todo, é do jeito que eu quero mas eu vou lá mostrar pra ela que assim mesmo do meu jeito é que é o certo.

Que se fodam cada um de vocês. 

Eu descrevi ao terapeuta que eu me sentia como quem cavava um jardim cheio de erva daninha alta. Eu cavo com uma colherzinha e eu preciso ir mais fundo. Dando de cara com toda a imensidão de larvas soterradas dentro do meu peito.

Sério, em algum momento eu quis ir mais à fundo, e ainda quero muito mais. Lavando a cara, parando de se esconder nas dopagens, nas vestes, nas mentiras de uma pessoa que não existe mais. E olha que nem tô falando de Beatriz ou Diana. Eu simplesmente resetei, ao mesmo tempo que resgato tudo à tona. Muito devagar mas ainda assim, é muito pra lidar. É terrível ser quem você é, e amar a solidão e temer estar só. É confuso, mas eu me entendo. Aliás, só eu me entendo.

É como se as coisas que usei pra me definir estivessem desaparecendo. Aqueles rótulos, adesivos, esmalte, característica, adorno, tudo sumindo como fumaça. E eu sempre tive medo. Sinto que não é só amadurecimento, talvez a morte tenha perdido a paciência com tantos pedidos que ela resolver tirar com a minha cara. E eu tô sumindo. Ou as pessoas estão sumindo... É que eu não consigo acreditar que eu seja um ser da cabecinha iluminada que vê coisas além do tempo, não. Eu sei que muito mais da metade da maioria das merdas que vocês idolatram não valem nada pra mim. Mas eu sigo disposta a mentir cada vez melhor. Eu vou pertencer... eu preciso pertencer à algum lugar.

Eu não consigo confiar nas pessoas, nas próximas, nas distantes, nas que não conheço. Pra mim, tudo não passa de um show barato, de uma série franqueada que se expande por conveniência e com orçamento cada vez mais baixo. É mais do que reconhecer que eu penso demais e não faço nada do que passo anos e anos planejando. É como se aquele sentimento de deslocamento lá da minha adolescência voltasse muito mais claro e mais forte. Tudo e todos tão distante, a minha bolha só cresce, e eu não penso em sair dela. Não mais. Mas eu minto, eu minto o tempo todo. Eu digo o que é conveniente até a hora que uma avalanche de dor se debruça nas minhas palavras, cheias de medo e incerteza. 

Pertencer ou não pertencer? Eu não tenho escolha.

Eu faço as escolhas. Não escolher é uma escolha por si só. Eu faço o que nunca é o suficiente no mundo dos excessos. Precisam de mais, mais carisma, mais mentira, mais sorriso, mais simpatia, mais acenos de mãos com dentes amarelos cheios de ódio. 

Eu me pergunto todo dia, quando é que o caminho de espinhos dessa roseira vai acabar? Quando eu vou chegar lá nas pétalas? Quando vou sentir maciez e não mais dor? Acho que me enganaram. Não é possível existir tantas perspectivas e se sentir tão merda e tão reclusa ao mesmo tempo. Não há ninguém igual à mim, eu digo, e sim, pois todos somos diferentes. Um mais estúpido que o outro e eu destoo pelo meu desprezo crescente pelo compartilhamento humano. Eu podia ter nascido cachorro. Eu já disse isso.

O lance da indiferença, isso bateu forte em mim. É uma via de mão dupla muito lucrativa. Sabe, quando te abandonam, te apontam, te julgam e comentam sobre o seu temperamento ou qualquer outra coisa absurdamente grave que você cometeu (grave, porquê a honestidade não existe no mundinho encantado das tolerância, fora do meticuloso script que eles planejaram e eu não segui), as pessoas esperam você se humilhar, pra se redimir como se eu tivesse culpa. E é aí que vem o grand finale. Eu abandono a peça no meio do ato mais importante, porquê pra mim não tem a mínima importância. Eu saio, pois não preciso de julgamento vindo de quem tem rabo preso, medos fúteis e mãos sujas. Eu saio leve, pois aqui nestes casos eu não tenho medo de estar só. Eu tenho raiva de péssimas companhias que me cercam. E eu não preciso de vocês.