Sem Antídoto

Estou com a mesma sensação e a dor do dia do meu parto. Minhas costelas têm uma pressão sobrenatural, e doem. Meu estômago dói. Tem um bolo de catarro e angústia na minha garganta. Às vezes sangue. A sensação afinal, é de que eu vou morrer. Sabe, quando você sabe que tá no meio de uma situação, bem fodida, a mais merda possível, e aí metade de você sente que tá tudo bem? Pois é, esse é o prelúdio perfeito pra sair da casinha e surtar pra caralho. 

Eu sinto vontade de chorar e de rir ao mesmo tempo porque, é ridículo e não há nada a mais, um plus, um extra, nada, que eu possa fazer. Os emails são redigidos diariamente. Olá boa tarde eu moro no cu do mundo e não tenho nada de especial no papel mas quero este emprego porque não tenho nada melhor pra fazer em casa e eu preciso alimentar meu filho. P.s.: o que vocês ainda não sabem é que eu engulo sapo adoidado e aceito tranquilamente as humilhações pra poder me manter nesse carguinho de bosta que vocês enfiam sete funções em uma e pagam mil e duzentos reais com cara dubitável pras minhas tatuagens.

Meus pais ficam velhos, doentes, estressados, medíocres, sem respeito e sem perspectivas. As contas chegam. O cheque especial aumenta. As compras são feitas e eu não sei comer. 24h sem comer nada barra 2h mastigando feito uma vaca sem parar.

Trocar o dia pela noite? Isso é coisa do passado. Agora é dormir sempre que der. Vegetar das 2h do sábado até 22h do domingo. Cochila, acorda, dorme, desmaia, acorda, tem pesadelo, ronca, baba, nem uma gota de água. E pra quem não tinha nada pra dizer pro terapeuta, falou abertamente sobre todas as justificativas plausíveis pra enfiar a cabeça num capacete e viver no seu mundinho.

O mundo ideal. Sem meus pais, um palco, sem preocupação, dinheiro, tranquilidade na cabeça, sem medo de julgamentos e nenhuma timidez. Aliás há que porra de hora que eu virei introvertida?!

Aí pá: manual básico de percepção que você tá fodido. (Atenção, pegue sua cartelinha que o bingo vai começar!)

E eu pauto tudo, zeradinho. Eu tô uma bosta. E beleza. Vai passar. Tem sempre os dias que são piores que os outros. E tem muitos dias que eu quero morrer. Sabe, minha arrogância às vezes não cabe dentro de mim. Tem dias que eu me odeio. Tanto. Por confiar demais. Por sentir demais. Dar sempre mais uma chance. Por errar. Por não ser uma boa mãe. Eu me odeio. Por saber demais. Ter noção das coisas é a pior coisa que você pode fazer por si próprio. 

Pra quê ligar?! O mundo não parou, muito pelo contrário, temos seiscentas mil oportunidades diárias pra fazer coisas ótimas mas eu prefiro ficar com o rabo na cama e dormir. É tudo muito belo e gentil mas a culpa é minha se eu vejo isso. Eu não emano nada, eu não trabalho o meu pensamentinho nhe nhe nhe e não atraio porra nenhuma. Aliás, eu já estaria enterrada se esse papinho de atração mental funcionasse. Caralho eu nem posso me ausentar um minuto desse plano infeliz que já estão em cima do meu filho falando pra ele dormir com deus e responder amém.

Eu me odeio porquê tenho muita eloquência pra falar com quem eu amo e não faço nada do que eu falo. Eu sou patética quando enfio o travesseiro na minha cara. E mais ainda quando eu choro, quando eu finalmente consigo chorar porque eu sei que não existe um antídoto mágico que eu possa beber e UAU... me sinto ótima e pronta pra mudar o (meu) mundo. Não existe receita de bolo pra vida, mas eu joguei a forma fora, a massa tá espalhada no chão e minha cabeça dentro do forno. Não existe milagre. Não existe oração. Não existe Deus. Não existe absolutamente nada além de mim e da boa vontade de alguém que me dê uma chance. Pra compartilhar. Pra amar. Pra trabalhar. E eu nem  cheguei na parte das coisas que dependem exclusivamente de mim.

Agora a minha nova invenção é reprimir sentimentos. Se não bastasse não chorar, não brigar, não recusar, não hesitar, agora eu também não posso ficar insatisfeita. Eu não deixo. Não é ninguém não, sou eu mesma que viro e falo EU NÃO POSSO FICAR ASSIM.

Pois eu vou. Já pensou ficar frustrada por sentir as coisas? Retardada. Eu já disse que você não é uma pedra, um robô, nada disso. Viver é isso, cabeça de bagre: quando você parar de sentir, é porque tá morta. E eu não posso morrer.

Eu tô bem confusa, pra falar a verdade.

Essa maldita dualidade. Eu não sei se isso é possível, tipo ter duas bases de consciência. Eu sei das coisas, sei das possibilidades e sei do que está e não está no meu alcance. E ainda assim tudo me tira do sério.

Até disso aqui eu tô cansada. Me perguntam “você não lê o que você publica?” e eu digo pra quê? Três meses depois, quem sabe. A insatisfação não é de hoje. Nem a revolta. No máximo, eu mudo conforme os dias vem e vão, e cada vez mais eu não sei de nada e só penso que tá tudo errado. Comigo e com os outros. Essa instituição falida. Essa mesmice, essa normalidade nojenta. Esses incontáveis tabus. Essa falta de discernimento. Essa cegueira maldita, mania de justificar o seu no meu e o de um num todo.

Eu cresci ouvindo que era doida. Eu cresci com as pessoas que eu mais amava esperando o pior de mim em toda e qualquer situação. Devo aplaudir e agradecer? Bem, apesar de respirando, mal, mas respirando, eu tô aqui. Sem eira nem beira, com a terapia paga mas devendo alguns meses de IPTU e contando moeda pra pegar ônibus. Pensando em qual vai ser o motivo que o Michael vai arrumar pra chorar e bater o pé e dizer “não quero”. Preocupada com o meu pai e sem estômago pra conversa. Segurando o soco que eu queria dar na minha mãe. Segurando o soco na porta. A vontade de vomitar. O ódio que eu sinto dessa falsa preocupação que têm comigo. Dessas palavras mastigadas que vocês tiram do cu pra me falar. Eu não tenho limite. É. Não tem aquele papo “ain, estou no meu limite". Mentira. Eu aguento. Eu sou forte. Só tô cansada e desanimada e nervosa. É habitual. Parece eterno, essa fadiga e a sensação de inutilidade. De anulação. De perturbação.

A terapia só serve quando te faz pensar no lixo que você é. Minha mãe talvez pode ter razão. Mas eu não posso morrer. Eu não posso e nem quero desistir das coisas. Um pouco só. Eu falo demais. E eu não falo nada. Mas com o terapeuta eu falo, estouro o tempo todo domingo. Espero que eu consiga bancar muitas sessões. Tem muito pro meu pai jogar na minha cara de que eu faço terapia e fico pior.

Quando se aprofunda no lodo, sabe, quando você abre essa sepultura dentro de você... nosso túmulo inviolável. É aí que você que tá adiantando. É crime abrir a cova, não é? Me parece que é tão terrível quanto, abrir nossa mente. Todo mundo é ruim. Todo mundo é bom e ruim. Todo mundo tem fraqueza. Todo mundo sangra, tem catarro e angústia dentro de si. Todo mundo chora, surta, grita, chora e chora. Só parece fácil pra maioria. Se for também não é da minha conta. Pra mim não é.