Estado Fleumático

 A gente só faz o que a gente tem que fazer. Estar amarrado à uma rotina e inventar coisa pra enfiar no meio da convivência truculenta. Come na hora que der fome só. Tira as capa do sofá e sacode as migalha de pipoca pro chão, e varre o chão, reveste a capa e passa um pano ali no chão. Recolhe brinquedo, arruma meticulosamente a mesinha e a cadeirinha, afofa a almofadinha. Prepara os ovos cozidos, corta um abacate, pica um alface, um tomate. Come a beterraba de ontem, e tudo bem almoçar tarde, enfiar a dieta no cu e matar um prato de brigadeiro. Come o que tem. Põe um pouco de açúcar no café, bebe a porra do café que você não vai morrer não. Pão com margarina, bolo de maracujá que deu azia, um ovo que não fritou muito bem mas, o que importa é que a gema está mole.

Manda email com anexo e um implore formal de gravata praquele anúncio escrito tudo errado. Quinhentas e vinte candidaturas chutando bem baixo e nada, porque tu não presta pra porra nenhuma e é isso aí. Ligam das imobiliárias, ligam do plano do celular, ligam querendo oferecer emprego que na verdade é curso. É isso, amanhã eu termino de refazer meu “doquixis".

Chora com a novela reprisada. Senta com o filho que fez merda antes de dormir e não bate nele. Senta pra conversar enquanto ele ri da sua cara e sua mão treme pra enfiar uma bolachona na cara dele. Fala que não é mais pra mexer nas tuas coisas, não é pra comer tanto doce. Pede pra ele comer logo. Reclama pacificamente com o pai dele pra parar de dar comida na boca do bonitão. Tenta lembrar que ele é criança e tu é uma mãe exigente demais. Mas ele tem que saber a mãe que tem. Aí cê pensa que tipo de mãe você quer ser. E melhora em passos microscópicos. Não berra. Fala firme. Abraça, pega no colo, pergunta o que foi. Fica puta de raiva sessenta vezes ao dia. Eu vou envelhecer bem mal... mas já é uma boa perspectiva pra quem achava que não passaria dos vinte e cinco.

Acende incenso, deita pra dormir mas antes dá uma espiada no seu exame. Lê as coisa e joga no google. Tá preocupada, fia? Não. Eu não tenho medo de morrer. Na verdade eu odeio ficar sem saber as coisas, esclarecidas, sabe? O que porra são lesões osteoblásticas? E enquanto eu não sei, um terceiro caroço aparece. Caralho... eu havia me esquecido da palavra “osteoblástica” e puxei “osteolítica". E agora vi que tem uma diferença bem legal nos resultados das pesquisas no Dr. Google. Esquece isso que tu não é médica. Vai um dia lá buscar as imagens, encontra a radiografia que entregou os dois (que são três) caroços e vai lá ver o que é. E tudo bem. Se precisar a gente arranca, deita na maca de novo e me rasga de novo, só que agora, no pescoço.

Eu não tenho medo de morrer.

Eu penso é que vou tratar mal quem me tratou com indiferença a vida inteira e vai olhar pra mim com dó se caso for alguma coisa. Vão pra longe de mim, eu definitivamente não preciso dessas caras de cachorro morto. Eu flerto tanto com a morte até hoje... eu não aprendi nada. Eu fico brincando aqui dentro da cabeça: tu vai morrer amanhã ou depois e tu não fez porra nenhuma do que tu queria. Cê não falou pra ele que ama ele. Cê não fala nada do que tu sente pra ninguém. Essas coisas, não ditas, sentidas e retidas, se esvaem como uma essência gostosa mas bem fraquinha, exalando do meu corpo. A minha cabeça muda de tempos em tempos e eu gosto de quem estou me tornando. Eu tolero o que já fui. Eu perdoo tudo o que fiz comigo mesma, mas tem dias que eu me caibo. Eu não quero. Eu não vivo. Eu não respiro. Eu sequer existo.

Eu li uma pequena história sobre monstros no navio. Que gritam, ofendem, assustam. Mas não machucam. Eles não podem nos tocar. São, nossos medos. Nossos pensamentos, sentimentos. Somos intocáveis, pelo menos eu espero que nada nos detenha fisicamente. E eu pensei em mim. Eu penso o tempo todo mas hoje eu consegui ficar bem. Pelo menos um dia eu não me deprimi por não obter respostas, seja dos emails, ou do porquê eu sou assim e faço tudo errado. Tudo bem. Eu vou fazer o que eu tiver que fazer. Não é que não importa mais... muito pelo contrário: mergulhar dentro de mim me faz me importar muito mais. Comigo, e com tudo que realmente importa. São muitas ideias de instruções prontas ao nosso respeito, o que fazer e como fazer, mas nada que nos toque e diga “olha pra dentro de você, caralho".

É tão gostoso saber o que a gente quer e entender as coisas. Ainda que poucas, mas quando há um mínimo de brilho nessa caminho surrado de decepções e tentativas de suicídio, uma faisquinha que EU VOU VIVER E FODA-SE aparecendo lá no cantinho.

Eu vou fazer o que eu tiver que fazer. Acho que o fazer já é alguma coisa. O estar em paz com as decisões que você toma e ter certeza de que está checando cada lacuna e dando o seu melhor da mísera tarefa possível. Eu estou fazendo o que posso. Quando me chamam eu vou lá, falar de mim, do quando eu sou comprometida, das incríveis habilidades de ouvir uma pessoa e atender às necessidades dela. E tudo isso narrando a linha de filmagem grotesca na minha memória, onde eu me sento num sofá imundo da salinha de espera e ouço a convidada discursar pra recrutadora. A câmera foca nas minhas mãos suando e depois na minha cara enquanto ela diz “eu moro há cinco minutos daqui" com uma risadinha como de quem sabe que levei mais uma hora pra chegar lá e ainda só cheguei no horário (depois de me perder) porque peguei um táxi. E a pitada cômica fatal: “ah eu adoro trabalhar com o público, eu gosto é de coisa difícil!” – reviro os olhos e abro a boca numa arfada estúpida e lá vem os risos da plateia.

As coisas soam muito estranhas pra mim. Eu juro que não é exagero mas me sinto completamente e cada vez mais deslocada. Eu sou uma tremenda incógnita caminhando pelas ruas com seus ombros rígidos e baixos, fones de ouvido e a cabeça à milhão. Não é mais arrogância me perguntar se sou mesmo natural deste planeta. Ou talvez devo estar ultrapassada pois tudo o que conhecia e prezava já não serve de merda alguma. E quer saber? Tudo bem. Tudo bem. Tudo bem. Eu espero. E eu, sobretudo aceito que a vida é essa piada fodida. Pra quê levar tudo tão à sério né? Todo mundo vai morrer. Meu pai, eu, sei lá. As coisas acontecem e eu só faço o que eu tenho que fazer, e o que não tá no meu alcance que me foda, né?

Eu tô bem, pelo menos hoje. Se o dinheiro não der, tudo bem. Se não tiver o que comer, tudo bem. Se eu estiver com alguma coisa, tudo bem. Eu só vou ficar puta porque não vai ter ninguém pra mostrar as músicas que eu gosto pro meu filho. Não vai ter ninguém pra falar pra ele que ler clube da luta foi uma delícia e que a filosofia acabou com quem eu era. É um lugar e uma expectativa que ninguém pode suprir e ninguém pode reclamar. Eu sei que estou divagando. Eu falo que tô bem e tô pensando se vou morrer ou não. Na verdade, eu dou risada toda vez que abro a pesquisa lá de novo e leio os tópicos de perguntas rápidas.

Eu nunca vi, fazer terapia e lidar desse jeito com as coisas. Parece que tanto faz. É porque realmente eu só tô pensando nisso, em fazer o que eu tiver que fazer. Vou fazer um remendo de recomendações como quem lê a bíblia e só lhe toma o que te convém. Eu fiz isso a vida inteira. Mas é muito louco olhar nesse prisma de reflexões e a trajetória percorrida entre não saber e não saber mesmo de nada. O que é que você quer? Responde aí pra si mesmo.

O saber é tipo uma injeção bem dolorida, um remédio bem amargo cheio de efeitos colaterais quase letais mas, tudo que faz muito bem com o passar do tempo.

Mesmo com as coisas perdendo o sentido na frente dos seus olhos, depois de rolar e levantar da cama numa fúria e angústia bestiais, das costas deslizando pelo azulejo do banheiro e a traqueia fechando, o choro explodindo numa luta pra entender o que está acontecendo versus porquê eu não consigo respirar. Tudo bem. Fora sentir uns sopros no rosto na noite anterior... era só o que me faltava.