Nulificação Temporária

A gente ainda continua naquele impasse de que a gente poderia ser mais positivo e se sentir grato por ter coisas que os outros não têm e por viver o agora sem se preocupar muito com o amanhã. Eu, definitivamente estou neutra. Só ando com medo do açúcar. Sim, o inimigo agora é outro! Nem café, nem cigarro e nem álcool. Que bela neutrona eu me tornei. Saladas gigantes no almoço com peixe, e chá. Garrafa de um litro de água na mesa, e chá. Deita no quintal pra tomar sol, e chá. Até exercícios no elíptico andei fazendo, por pouco tempo. E mais chá. E água. E chá.

Minha esperança de trabalho já morreu. Digo, trabalhar num lugar sem as pessoas olharem pro meu pescoço. Se bem que estou pau a pau de escolher que merda maior que eu fiz: tatuar à mostra ou voltar pra minha cidade natal. Fica aí o questionamento. Continuo mandando incontáveis emails pra domínios desconhecidos, dando meus documentos à sites que parecem mais coleta de cobaias para tráfico de órgãos e nada. Um telefonema veio, era um curso, não era emprego. E nem pra isso eu servia porquê estava acima da idade. É isso, vinte e quatro já já, sem trabalho, sem diploma e sem dinheiro. E sem estribeira também. 

Tive um episódio muito ruim num dia anterior. O que antecedeu o primeiro dos sessenta dias que meu pai vai ficar afastado do trabalho. A febre da cabana chegou pra mim, mas não, não matei ninguém. Na verdade foi um ato suicida pois eu jamais senti tanta ira, mas tanta ira que passou por cima do medo que eu tenho do meu pai. É vergonhoso falar disso mas acho que é necessário.

Eu não sei por onde começar. Me sinto um tanto frágil me expondo e meio blasé usando termos como “abusivo" ou “tóxico”. Mas chega a hora do basta, essa porra dessa hora chega você querendo ou não. Pelo menos comigo, o estopim foi quase como um sopro sobre a mobília antiga. Carrego mágoas de anos. Vinte. E não só pelos anos... essas coisas nos corroem. O silêncio envenena nossa cabeça bem devagar, como uma conserva guardada no escuro, longuíssima duração e azedume. Carrego coisas recentes, medos intermináveis como um bicho que, no primeiro sinal de presunção de ataque, vai pra cima com tudo o que têm.

Eu piso em ovos com quase nada. Cautela não é algo muito familiar nas minhas atitudes e a racionalidade é minha nova melhor amiga da semana passada. E toda essa merda de trabalho foi pelo ralo, como o sopro na mobília e no meu castelo de cartas marcadas de centenas de vezes que me calei.

Já ouviram um porco gritando? Eu senti um chiado estrondoso na garganta e no ouvido. Eu me ensurdeci. Eu berrei. Pedi o basta, “chega!” – bradei. E vi ele batendo palmas pra mim. E não satisfeita, já estava saindo e voltei, meti diversos socos na mesa e o ouvido chiou de novo. Ele levantou. Pensei “ele vai me bater". Mas nem deu tempo de concluir isso tudo na mente porquê eu tava ocupada demais gritando. Ele me perguntou porquê eu estava gritando. E mais uma vez. E outra. Ele não deu a mínima pra nada do que eu disse até eu destravar completamente e finalmente dizer que eu não suporto ele bêbado, porquê ele grita comigo e com a minha mãe há anos, e que eles brigam por nada, e que a vivência é insuportável. Eu não aguento mais essa casa, eu só voltei pra cá porquê sou uma inútil que não sabe fazer nada e não tem pra onde ir porquê eu preferiria morrer do que morar aqui.

E como mágica, a ironia e a cachaça sumiram da cara do velho, sem mais olhos arregalados e tensão nas têmporas. Minhas lágrimas explodiram como pus de uma unha encravada há anos. Tudo em mim jorrava dor. Eu nem sentia minhas mãos. E bufava como um cão. Eu me tornei muito de tudo que me machucou um dia. E não, não me orgulho disso.

Comentei com um grande amigo sobre esse lance de gratidão eterna. Eu vivencio com muita frequência, pessoas que me dão suporte e apoio em qualquer coisa e depois pisam na bola. Eu não quero entrar em detalhes, mas porra... eu não sou tão difícil assim! Eu erro pra caralho, eu sei disso, mas se eu te ajudo é porquê posso ajudar. Eu quero que se foda o que você pensa disso. Eu faço porquê sinto que é o que devo fazer sem hesitar. E se eu errar com você à nível de espalhar suas coisas pras pessoas, te ferir com intenção, agir como uma filha da puta, aí sim você pode revidar ou espalhar pros quatro cantos que eu sou uma merda. O bom senso parece que nunca prevalece. Nunca. Se você quer algo de mim, peça. Provavelmente o terá. Mas não me foda em troca de gratidão passada. Eu não vivo de favores ou de banco de dados memoráveis. Não faça nada por mim. Não preciso de nada até que eu chegue em você e te peça. E pode ter certeza que eu só peço à quem tenho certeza que pode comigo. Que pode contar comigo. Que pode estar comigo.

Já me enganei, algumas vezes. Tem gente que a gente não espera que distorça tanto as coisas. Mas existe. E o erro existe. Mas como sou exigente (uma carrasca) comigo mesma, tenho padrões altos. Mas eu só queria o bom senso. E já tô pedindo demais, pelo visto.

O basta chegou. Ninguém mais fala o que quer pra mim ou faz o que quer comigo. Eu não tolero mais nada. Eu não consigo suportar mais dor nenhuma. Nenhuma mentira, nenhuma omissão. Não cabe mais essa palhaçada dentro de mim. Eu quero ser levada à sério e tratada com respeito. Dentro de casa. Na calçada. Na balada. No trabalho. Eu não aceito mais nada abaixo do que eu mereço: máximo respeito.

Eu já devo ter falado que não sou uma pessoa que aceita coisas. Mesmo cansada eu não vou aceitar determinadas coisas sendo que eu tô correndo atrás de tudo isso. Eu não aceito não como resposta de coisas que eu sei que tenho capacidade pra fazer. Eu só me meto em coisa pra ganhar. Eu não me entrego pouco, eu me jogo em tudo o que faço. E por achar que meu desempenho vale de bosta, eu não aceito sair de mãos vazias.

Eu não posso falar muito sobre o agora. A minha parte eu estou fazendo. Muita água, muito raciocínio lógico, saladas e currículos. Tá tudo a mesma coisa, com cheiro de mofado e sensação de morte enlatada. A belíssima propaganda niilista em preto e branco que mostra meu reflexo barrigudo no sofá me deleitando com a morte enlatada nas mãos pensando “que conselho eu posso dar aos meus amigos que tanto amo, sendo que eu penso que tudo deve se acabar nesse instante e que nada vai melhorar?” e penso em todos os que estão tão fodidos quanto eu. Independente da área. Não ligo pra sua casa, pra sua roupa, pro seu dinheiro. Todo mundo tá fodido. Queria muito que as coisas não fossem assim mas também não exponho essa baboseira pessimista. Eu guardo pra mim e faço o que posso. Sem certeza de nada, sem ânimo de ouvir música, sem ânimo de ler, sem ânimo de assistir, sem ânimo. Eu insisto nem sei porquê. Apostando fichas de um centavo.